Chovia forte naquele início de tarde. Maria acabara de tomar café. Acendeu um
cigarro e foi até a janela.. Gotas d’água escorriam pela vidraça, parecendo
querer brincar com o rosto sisudo da mulher. A respiração ofegante de Maria
embaçou o vidro. A paisagem lá fora ficou totalmente opaca. Como a vida de
Maria. “Opaca, pacata, sem brilho”, pensava.
A chuva
parou. Maria continuou olhando o horizonte, deixando os pensamentos circularem
livremente em sua mente. Depois, eles foram direcionados para a reflexão. Maria
iniciou, então, uma introspecção. Enquanto refletia sobre sua vida,
defrontou-se com algumas surpresas. Entre elas, o mistério de seu próprio ser.
As mãos frias
e úmidas denotavam a ansiedade com as possíveis descobertas que poderiam
ocorrer ao penetrar nas profundezas de
sua interioridade. Maria sabia que o autoconhecimento é a verdadeira sabedoria.
Mas sabia, também, que à medida que o homem deslinda o seu ser ele percebe-se
marcado por traumas, imposições, complexos dos quais precisa se libertar.
Esbarra nas suas limitações no campo da inteligência, da vontade, do
sentimento, da ação. Angustia-se diante da intensidade de seus anseios e a
distância da exiqüibilidade. Muitas vezes, pode rejeitar-se a si mesmo e
desgastar-se com uma neurose que o
desequilibra devido ao processo de não-aceitação.
Voltou a
chover. Agora, relâmpagos cortavam o céu seguidos de fortes trovões.
Maria foi
para o sofá da sala onde recostou-se em uma almofada. Ficou assim, longo tempo;
ausente de suas coisas mas adentrando num momento de presença de si mesma.
Pensando... debruçando-se, olhando para dentro do poço e fitando sua própria imagem refletida.
*** ***
Ainda pequena, aos seis anos de idade, os pais se separaram num clima de rancor. A garota ficou com a
mãe, sentindo a ausência doída do pai.
Ela não
conseguia entender porque o pai não a visitava, não a levava a passear. Renata,
sua coleguinha de escola, também era filha de pais separados, mas passeava
com ele nos finais de semana e também
viajava com ele nas férias. O pai de Maria não demonstrava lembrar dela nem
mesmo no dia do seu aniversário.
*** ***
A mãe de Maria era
evangélica, e procurava criar a garota dentro dos “preceitos bíblicos”,
onde praticamente tudo era pecado. Até cortar o cabelo era “pecado”. Assim, a menina foi crescendo num mundo de
proibições e de medo de que, cometendo um “pecado”, não iria para o céu quando
morresse.
Na
adolescência, a garota tentou seus primeiros passos rumo ao questionamento das
verdades e valores apregoados por sua mãe e demais membros da igreja que
freqüentavam. Maria descobriu que a verdade dela não correspondia à de sua mãe.
Descobriu que as “verdades” mudam conforme a nossa captação, nossa compreensão,
nossas descobertas.
A mãe de Maria acreditou nas
doutrinas da igreja evangélica pela fé, pelo testemunho dos membros do grupo,
sem questionamento. A jovem, entretanto, diante de realidades como a vida, a
morte, a justiça e injustiça, o viver-com-outros, o bem e o mal, quis buscar o
sentido mais profundo, as últimas explicações, as últimas causas. Maria queria
encontrar o sentido de tudo. Não conseguiu.
*** ***
Estudou, formou-se , casou, teve filhos. Separou também.
*** ***
Do fundo do poço, os olhos que
fitavam Maria pareciam angustiados. Pediam socorro. O rosto marcado, por vincos
profundos, mostrava a passagem do tempo.
Maria chorou.
Lágrimas caíram lá em baixo, na água, formando círculos que se movimentavam
rapidamente. A imagem refletida ondulava. Por alguns segundos Maria reviu a
menina de outrora, questionadora, sorridente, feliz, em paz. A magia durou pouco.
Quando o movimento de ondulação foi
parando um rosto de mulher fitou Maria. Que levou um susto! Não era mais o
mesmo rosto. Tornara-se mais suave, mais jovem. Mas tinha um olhar inquisidor, porém mais tranqüilo.
*** ***
*** ***
Tranqüilidade era um sentimento já quase esquecido por Maria. Dois anos após
seu casamento começaram as dificuldades financeiras. Cláudia, sua filha, estava
então com oito meses e outro bebê era esperado. Ele nasceu seis meses depois.
Cláudia, com um ano e dois meses de idade,
sentia muito ciúme do irmão Rodrigo. O marido perdera o emprego.
Maria passou a sustentar a família, sozinha, como free-lancer de uma editora.
Traduzia do inglês para o português. Mas o dinheiro que ganhava por esses
trabalhos era pouco. Pouco também era o que conseguia fazer, pois as crianças
absorviam muito do seu tempo. E o marido não ajudava nos afazeres domésticos. Em nada. Ela decidiu que
contrataria uma empregada doméstica e procuraria um emprego. Continuaria com o
trabalho de free-lancer, que seria realizado à noite. Saiu à luta. Empregou-se em
uma imobiliária, como gerente. As finanças da casa retomaram o equilíbrio, mas
a relação entre o casal estava
desabando.
Roberto continuava em casa,
sem trabalhar. Sem procurar trabalho. O casamento acabou. Separaram-se. Nessa época, Cláudia
estava com quatro anos e Rodrigo com dois anos e dez meses.
Vários anos difíceis passaram desde
então.
*** ***
Maria voltou
a fumar muito, depois a ingerir bebidas alcoólicas. Tentava novos romances, mas
sempre errava na escolha. Desistiu de procurar um parceiro para sua vida.
Passou por momentos depressivos, bebendo cada vez mais. Não dava atenção aos
filhos. Que foram crescendo, sem que ela percebesse.
*** ***
Do fundo do poço, a mulher sorriu.
Com a boca, com os olhos.
Maria retornou às suas
coisas, à sua casa, a seus filhos. Levantou-se do sofá e foi até o telefone.
Confiante, decidida. Ligou para a secretária de um psiquiatra que uma amiga
havia sugerido. Marcou sua primeira consulta.
*** ***
O relógio marcava l6h30min. Havia parado de chover. Raios de
sol entravam pela janela da sala. Maria abriu o armário da cozinha e pegou as
garrafas de bebida. Colocou-as em cima da pia. Retirou as tampas, uma a uma,
depois, abriu a torneira e foi despejando o conteúdo das garrafas, que se
misturava à água que descia pelo ralo. O cheiro de wodka, vinho, uísque e
cerveja impregnou todo o ambiente. Ela estava decidida a mudar o rumo de sua
vida. Abriu as janelas para deixar o vento entrar, pegou um saco de lixo,
colocou dentro dele as garrafas e levou até a lixeira. Ao retornar à casa,
sentia-se uma nova mulher.
Liberta. Ou quase.
Foi para a cozinha e
fez um bolo de chocolate, coberto com chocolate caramelizado. Cláudia e Rodrigo
adoravam esse bolo! Fez também suco de morango, bem gelado.
Ajeitou a sala,
limpou a cozinha e preparou a mesa, onde colocou uma toalha florida, os copos e pratos novos,
presente de aniversário de suas amigas
Ana e Carolina. O cheiro do bolo
substituíra o das bebidas. Olhou para o
relógio. Os filhos deveriam chegar em aproximadamente l5 minutos.
Acendeu um cigarro e foi à janela.
Lá fora, garotos jogavam bola. O céu estava todo azul-escuro. Em poucas horas
seria noite. Amanhã, um novo dia. Maria retornaria ao trabalho, após três dias
de atestado médico. Esses atestados já estavam ficando freqüentes devido às fortes enxaquecas que impediam Maria de
trabalhar. Mudar o rumo dos acontecimentos era de sua responsabilidade. Isso
ela sabia. E agora, com coragem para fazê-lo. Mudar implica lidar com o
desconhecido. Sair do familiar e ir para o estranho. Naquele momento teve
consciência de que era bem mais capaz do que até então pensava ser. Sabia-se
também sujeita a cometer enganos. Mas perdera o medo de tentar, de ousar. Todo
o momento pode ser um novo começo.
***
***
Rodrigo e Cláudia ( ela com l4 anos
e ele com l2 anos e oito meses de idade ) estranharam o comportamento da mãe.
Encontraram-na sóbria e sorridente, o que há muito tempo não acontecia. Quando
estava sóbria, era carrancuda. Quando ria, estava bêbada. Mas não fizeram comentário
a esse respeito. Apenas abraçaram a mãe, e agradeceram pelo delicioso bolo de
chocolate. Ao abraçarem-se, os três, souberam que estavam passando para uma
nova etapa. De controle. De ação. De afeto
sentido e demonstrado.
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Bl. 1999
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