7 de nov. de 2010

Uma nova mulher


Chovia forte naquele início de tarde. Maria acabara de tomar café. Acendeu um cigarro e foi até a janela.. Gotas d’água escorriam pela vidraça, parecendo querer brincar com o rosto sisudo da mulher. A respiração ofegante de Maria embaçou o vidro. A paisagem lá fora ficou totalmente opaca. Como a vida de Maria. “Opaca, pacata, sem brilho”, pensava.
A chuva parou. Maria continuou olhando o horizonte, deixando os pensamentos circularem livremente em sua mente. Depois, eles foram direcionados para a reflexão. Maria iniciou, então, uma introspecção. Enquanto refletia sobre sua vida, defrontou-se com algumas surpresas. Entre elas, o mistério de seu próprio ser.
As mãos frias e úmidas denotavam a ansiedade com as possíveis descobertas que poderiam ocorrer ao penetrar  nas profundezas de sua interioridade. Maria  sabia que  o autoconhecimento é a verdadeira sabedoria. Mas sabia, também, que à medida que o homem deslinda o seu ser ele percebe-se marcado por traumas, imposições, complexos dos quais precisa se libertar. Esbarra nas suas limitações no campo da inteligência, da vontade, do sentimento, da ação. Angustia-se diante da intensidade de seus anseios e a distância da exiqüibilidade. Muitas vezes, pode rejeitar-se a si mesmo e desgastar-se com uma neurose  que o desequilibra devido ao processo de não-aceitação.
Voltou a chover. Agora, relâmpagos cortavam o céu seguidos de fortes trovões.
Maria foi para o sofá da sala onde recostou-se em uma almofada. Ficou assim, longo tempo; ausente de suas coisas mas adentrando num momento de presença de si mesma. Pensando... debruçando-se, olhando para dentro do poço e  fitando sua própria imagem refletida.
*** ***
Ainda pequena, aos seis anos de idade, os pais se separaram  num clima de rancor. A garota ficou com a mãe, sentindo a ausência doída do pai.
Ela não conseguia entender porque o pai não a visitava, não a levava a passear. Renata, sua coleguinha de escola, também era filha de pais separados, mas passeava com  ele nos finais de semana e também viajava com ele nas férias. O pai de Maria não demonstrava lembrar dela nem mesmo no dia do seu aniversário.
                
 *** ***
A mãe de Maria  era  evangélica, e procurava criar a garota dentro dos “preceitos bíblicos”, onde praticamente tudo era pecado. Até cortar o cabelo era “pecado”.  Assim, a menina foi crescendo num mundo de proibições e de medo de que, cometendo um “pecado”, não iria para o céu quando morresse.
Na adolescência, a garota tentou seus primeiros passos rumo ao questionamento das verdades e valores apregoados por sua mãe e demais membros da igreja que freqüentavam. Maria descobriu que a verdade dela não correspondia à de sua mãe. Descobriu que as “verdades” mudam conforme a nossa captação, nossa compreensão, nossas descobertas.
A mãe de Maria acreditou nas doutrinas da igreja evangélica pela fé, pelo testemunho dos membros do grupo, sem questionamento. A jovem, entretanto, diante de realidades como a vida, a morte, a justiça e injustiça, o viver-com-outros, o bem e o mal, quis buscar o sentido mais profundo, as últimas explicações, as últimas causas. Maria queria encontrar o sentido de tudo. Não conseguiu.
     *** ***
Estudou,  formou-se , casou, teve filhos. Separou também.
              
    *** ***
Do fundo do poço, os olhos que fitavam Maria pareciam angustiados. Pediam socorro. O rosto marcado, por vincos profundos, mostrava a passagem do tempo.                                                                
Maria chorou. Lágrimas caíram lá em baixo, na água, formando círculos que se movimentavam rapidamente. A imagem refletida ondulava. Por alguns segundos Maria reviu a menina de outrora, questionadora, sorridente, feliz, em paz. A magia durou pouco. Quando o movimento de  ondulação foi parando um rosto de mulher fitou Maria. Que levou um susto! Não era mais o mesmo rosto. Tornara-se mais suave, mais jovem. Mas tinha um olhar inquisidor, porém  mais tranqüilo.


                                                                  *** ***                                                           
Tranqüilidade  era um sentimento  já quase esquecido por Maria. Dois anos após seu casamento começaram as dificuldades financeiras. Cláudia, sua filha, estava então com oito meses e outro bebê era esperado. Ele nasceu seis meses depois. Cláudia, com um ano e dois meses de idade, sentia muito ciúme  do irmão Rodrigo. O marido perdera o emprego. Maria passou a sustentar a família, sozinha, como free-lancer de uma editora. Traduzia do inglês para o português. Mas o dinheiro que ganhava por esses trabalhos era pouco. Pouco também era o que conseguia fazer, pois as crianças absorviam muito do seu tempo. E o marido não ajudava nos afazeres domésticos. Em nada. Ela decidiu que contrataria uma empregada doméstica e procuraria um emprego. Continuaria com o trabalho de free-lancer, que seria realizado à noite. Saiu à luta. Empregou-se em uma imobiliária, como gerente. As finanças da casa retomaram o equilíbrio, mas a relação entre o casal estava  desabando.
Roberto continuava em casa, sem trabalhar. Sem procurar trabalho. O casamento  acabou. Separaram-se. Nessa época, Cláudia estava com quatro anos e Rodrigo com dois anos e dez meses.
         Vários anos difíceis passaram desde então.
         
*** ***
Maria voltou a fumar muito, depois a ingerir bebidas alcoólicas. Tentava novos romances, mas sempre errava na escolha. Desistiu de procurar um parceiro para sua vida. Passou por momentos depressivos, bebendo cada vez mais. Não dava atenção aos filhos. Que foram crescendo, sem que ela percebesse.

                                                               *** ***
         Do  fundo do poço, a mulher sorriu. Com a boca, com os olhos.
Maria retornou às suas coisas, à sua casa, a seus filhos. Levantou-se do sofá e foi até o telefone. Confiante, decidida. Ligou para a secretária de um psiquiatra que uma amiga havia sugerido. Marcou sua primeira consulta.

*** ***
O relógio marcava  l6h30min. Havia parado de chover. Raios de sol entravam pela janela da sala. Maria abriu o armário da cozinha e pegou as garrafas de bebida. Colocou-as em cima da pia. Retirou as tampas, uma a uma, depois, abriu a torneira e foi despejando o conteúdo das garrafas, que se misturava à água que descia pelo ralo. O cheiro de wodka, vinho, uísque e cerveja impregnou todo o ambiente. Ela estava decidida a mudar o rumo de sua vida. Abriu as janelas para deixar o vento entrar, pegou um saco de lixo, colocou dentro dele as garrafas e levou até a lixeira. Ao retornar à casa, sentia-se uma nova mulher.
            Liberta. Ou quase.
         Foi para a cozinha e fez um bolo de chocolate, coberto com chocolate caramelizado. Cláudia e Rodrigo adoravam esse bolo! Fez também suco de morango, bem gelado.
            Ajeitou a sala, limpou a cozinha e preparou a mesa, onde colocou uma toalha florida, os copos e pratos novos,  presente de aniversário de suas amigas  Ana e Carolina.  O cheiro do bolo substituíra  o das bebidas. Olhou para o relógio. Os filhos deveriam chegar em aproximadamente l5 minutos.
                                                                               
   Acendeu um cigarro e foi à janela. Lá fora, garotos jogavam bola. O céu estava todo azul-escuro. Em poucas horas seria noite. Amanhã, um novo dia. Maria retornaria ao trabalho, após três dias de atestado médico. Esses atestados já estavam ficando freqüentes devido às  fortes enxaquecas que impediam Maria de trabalhar. Mudar o rumo dos acontecimentos era de sua responsabilidade. Isso ela sabia. E agora, com coragem para fazê-lo. Mudar implica lidar com o desconhecido. Sair do familiar e ir para o estranho. Naquele momento teve consciência de que era bem mais capaz do que até então pensava ser. Sabia-se também sujeita a cometer enganos. Mas perdera o medo de tentar, de ousar. Todo o momento pode ser um novo começo.
                                                                    *** ***
 Rodrigo e Cláudia ( ela com l4 anos e ele com l2 anos e oito meses de idade ) estranharam o comportamento da mãe. Encontraram-na sóbria e sorridente, o que há muito tempo não acontecia. Quando estava sóbria, era carrancuda. Quando ria, estava bêbada. Mas não fizeram comentário a esse respeito. Apenas abraçaram a mãe, e agradeceram pelo delicioso bolo de chocolate. Ao abraçarem-se, os três, souberam que estavam passando para uma nova etapa. De controle. De ação. De afeto  sentido e demonstrado.    



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     Bl.  1999





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