12 de set. de 2011

Cirurgia perigosa extrai tumor raro que fazia criança menstruar


KERIDWEN CORNELIUS
Estados Unidos

Grace Webster, uma menina de três anos, está estendida na mesa de operação - um corpo pequenino e aparentando frio. Ela veste apenas uma fralda, e seu cabelo loiro está revolto. Os olhos azuis de Grace contemplam, sem se fixar, as imensas máquinas que a cercam, estendendo tentáculos na direção de seu corpo. As máquinas orientarão o trabalho dos cirurgiões que penetrarão 10 centímetros em seu cérebro. Grace teve sua primeira menstruação aos 14 meses. O corpo dela sofre mais de 10 convulsões ao dia, e algumas delas são imitações bizarras de acessos de raiva ou riso.
A fonte de todas as suas dificuldades é um hamartoma hipotalâmico, ou HH, um tumor do hipotálamo encontrado em apenas alguns poucos milhares de pacientes no mundo. E embora o tumor não seja maligno, até cinco anos atrás era considerado incurável, mesmo nos casos em que os médicos, intrigados, conseguissem localizá-lo. As cirurgias para resolver o problema eram arriscadas e em larga medida ineficientes. Os medicamentos tampouco ajudavam muito. Muitas das crianças que sofrem da doença viviam internadas.
Agora, graças a um procedimento cirúrgico inovador, dezenas de crianças foram curadas nos dois centros que se especializam no tratamento dessa doença, em Melbourne, Austrália, e no Instituto Neurológico Barrow, aqui em Phoenix.
São oito da manhã de 20 de abril de 2007, e na mesa de cirurgia do Barrow uma enfermeira e um anestesiologista especializado em cirurgias neurológicas estão tentando encaixar a máscara anestésica na boca da paciente.
Ela resiste. O rosto da menina fica avermelhado, e ela começa a chorar  ruidosamente. Um dos braços dela se fecha em torno de seu cachorrinho de pelúcia, o outro se estende em direção à porta enquanto ela chama por Erica, sua mãe.
A máscara por fim é colocada, e a barriga de Grace se move ritmicamente enquanto o anestesiologista injeta o gás em seu corpo. A enfermeira insere tubos na boca, nos braços, nos dedos dos pés, nas costas e na uretra da menina. (Agora parece que Grace está criando tentáculos.)
A paciente é conduzida em um carrinho a uma sala vizinha para passar por uma ressonância magnética especializada. O exame produz uma imagem de alta definição, integrada a um sistema de rastreamento que orientará os cirurgiões na operação do tumor. Os médicos registrarão imagens do cérebro de Grace ao longo de toda a cirurgia, identificando com precisão os locais em que as principais estruturas cerebrais se encontram. As imagens magnéticas também revelarão o tamanho exato do tumor.
"É grande, e perigoso", diz o anestesiologista, Dr. Steven Shedd. Com 3,23 centímetros de extensão, o tumor tem tamanho semelhante ao de uma bola de pingue-pongue. Ele se estende do hipotálamo e ocupa boa parte da cavidade vizinha.
O hipotálamo é um dos coringas do cérebro. Ele mantém o corpo em sua situação estável, regulando a temperatura, pressão sangüínea, equilíbrio de fluidos e digestão. Também controla o apetite, a agressividade e o embaraço, o que explica a estranha combinação de sintomas de um hamartoma.

Grace
Quando Grace passou por sua primeira menstruação, a mãe correu com a menina ao pediatra. Os testes revelaram que os órgãos reprodutores da menina, aos 14 meses de idade, haviam se desenvolvido em estágio semelhante ao que costuma ser atingido aos 12 anos. Quatro dias mais tarde surgia o diagnóstico de hamartoma hipotalâmico. Os Webster foram informados de que em breve sua filha passaria por surtos "gelásticos", ou de risadas.
Os surtos começam com um sorriso largo e distorcido, como se uma mola presa ao olho e ao canto da boca da menina fosse acionada. "Esse não é o sorriso dela", diz Erica Webster, uma analista de negócios, mostrando um vídeo de sua filha. O olhar da menina não tem foco, sua risada é entrecortada, sua respiração entrecortada. Mas um observador não profissional interpretaria esses sinais como uma forma adorável de excentricidade, e não como indícios de um tumor imenso.
Entre os quatro e os 10 anos de idade - ou ainda mais cedo em casos severos como o de Grace -, o caráter desses surtos muda, e Dr. Jekyll se torna Mr. Hyde. Os acessos de riso se tornam surtos de raiva destrutiva e intensas e paralisantes convulsões. "É como acionar o interruptor de luz e ver alguma coisa tomar posse do corpo de sua filha", disse Webster sobre os acessos de raiva.
No primeiro deles, ela estava brincando alegremente com um livrinho de colorir quando repentinamente começou a gritar a socar tudo que a cercava. Quando os pais impediram que ela quebrasse os móveis, ela começou a se atacar, arranhando seu rosto e mordendo seus braços. No estágio seguinte, o desenvolvimento cognitivo, que já costuma ser mais lento, termina estagnado. A criança muitas vezes exibe traços de autismo e de desajuste social. A personalidade que brilhava entre os surtos começa a se atenuar, atrofiar.
Diante de um futuro assim sombrio, muitos pais, como Erica e Perry Webster, preferem o risco de uma cirurgia que pode propiciar a seus filhos uma vida normal. Perry Webster, designer, disse que foram informados de que "outras crianças com HH passaram pela operação e se recuperaram muito bem". Mas o dia deles na sala de espera será muito longo.

A cirurgia
De volta à sala de cirurgia, o clima é positivo. Um aparelho de som toca rock. O cirurgião, Dr. Harold Rekate, um homem de olhar bondoso e jeito de avô, está raspando o cabelo de Grace. Há nove médicos e enfermeiras na sala, e eles estão envolvendo a menina em um casulo de lençóis esterilizados. Quando acabam, ela é uma pilha de tecido azul, e a única coisa visível da menina é uma porção do couro cabeludo.
O primeiro neurocirurgião a enfrentar o tumor é o Dr. Scott Wait, jovem e com cara de galã de seriado médico. "É um tumor imenso", ele diz. "Em casos assim, trabalhamos com múltiplos cirurgiões. Hoje serão três".
Ele faz a primeira incisão no couro cabeludo e afasta a pele a fim de expor o crânio. Antes de perfurar, ele foca o osso com uma varinha, um aparelho de navegação que fotografa o cérebro. O rangido da broca se sobrepõe à música, que agora é mais calma, com cara de música de sala de espera.
São 1h22min. Wait manobra para se acomodar em uma cadeira cirúrgica, e encosta o rosto a um gigantesco microscópio. A imagem magnificada surge em uma tela de TV na parede. Um bisturi e pequenas tesouras surgem na imagem, cortando e afastando gentilmente as membranas externas do cérebro. Do lado de dentro, veias púrpuras se emaranham e artérias vermelhas se espalham como teias de aranha, em torno dos convolutos circuitos cerebrais.
São 11h55min. A música foi desligada. Wait explora lentamente a separação entre os dois hemisférios cerebrais, cortando um caminho pelo corpus callosum - a ponte que os conecta - e chega a uma membrana conhecida como septum pallucidum.
Cirurgicamente, ele está em uma estrada de baixo movimento. No passado, os cirurgiões preferiam adotar o caminho mais curto, iniciando a exploração pela parte inferior do cérebro, mas não costumavam encontrar sucesso. Muitos pais eram informados de que a cirurgia não oferecia esperança.
12h20min. Wait está navegando pelo terceiro ventrículo de Grace, uma pequena bacia de fluido cérebro-espinhal. Em meio ao fluido, é possível divisar uma massa rosada de consistência semelhante à da gordura: o tumor.
Wait e Rekate consultam as imagens de ressonância magnética que o monitor oferece. Linhas verdes convergem no hamartoma, o alvo. Wait explora o tumor, que começa a sangrar. A mangueira de sucção entra em ação e remove o sangue.
"Deixe-me trabalhar por algum tempo", diz Rekate, trocando de posição com Wait. Ele está equipado de um aspirador cirúrgico ultra-sônico, um instrumento que gira a 23 mil rotações por segundo, e ao mesmo tempo irriga, aspira e emulsifica o tumor.
13h26min. Entra um homem usando uma touca cirúrgica decorada com teclas de piano. É o Dr. Robert Spetzler, o diretor do instituto. Rekate troca de lugar com ele. Spetzler, um homem ágil e intenso, avalia o tumor com o aspirador. Passam-se 20 minutos. Rekate expressa espanto: "Aquilo é a artéria basilar?"
Ele está falando do equivalente a uma armadilha explosiva, porque a artéria em questão é o principal canal de sangue para a porção traseira do cérebro. Enquanto Spetzler movimenta o aspirador em torno do vaso sangüíneo, ele murmura algo como "estou me sentindo bem desconfortável aqui". Poças de sangue inundam a cavidade, mas elas vêm apenas de algumas artérias minúsculas. A topografia do monitor cardíaco e os sinais vitais se mantêm confortavelmente elevados.
Spetzler ataca o tumor aparentemente infinito por todos os lados. Os tecidos começam a parecer enganosamente semelhantes. "É aqui que temos de confiar naquilo que a varinha está vendo", diz Retake. "Porque do lado de dentro as coisas não são tão óbvias".
14h17min. Spetzler se levanta. "Não acho que tenha sobrado nada", diz, e sai, sem cerimônia. Rekate diz: "Obrigado". Quando a porta se fecha, Wait balança a cabeça: "Caramba", ele exclama, sobre a decisão de Spetzler de usar o aspirador sobre a artéria basilar. "Acho que nunca vou fazer coisa parecida".
Wait começa a concluir a cirurgia, e a preparar Grace para uma nova ressonância magnética. Rekate se vai. O rock retorna.
Às 17h, os resultados são revelados. "Nossa, conseguimos remover a coisa toda", diz Wait. Mas acrescenta: "Não posso garantir que ela nunca passará por novo surto".

Surtos podem voltar
Quando removido, um hamartoma hipotalâmico não retorna. Mas o destino de Grace continua em dúvida. No Barrow, 90% dos pacientes de hamartoma passam pela cirurgia e conseguem reduzir em pelo menos 90% seu número de surtos, diz Rekate, e 60% deles se curam completamente. Outros 10% não melhoraram em nada com a cirurgia. E dois pacientes morreram na mesa de operações.
A abordagem que eles estão usando é coisa antiga nos tumores de ventrículo, mas nunca havia sido empregada para o HH, disse o Dr. George Jallo, neurocirurgião pediátrico do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore. "Os médicos do Barrow refinaram a técnica e vêm obtendo grande sucesso", disse Jallo, mas acrescentou que "ainda não chegamos a um veredicto. Precisamos acompanhar essas crianças por muitos ano a fim de determinar os efeitos de longo prazo".
Passado um ano da operação, Grace ainda sofre de uma forma de diabetes e de problemas de tireóide, mas está melhorando. Graças a fisioterapia e terapia de fala, ela está recuperando o tempo de desenvolvimento que perdeu, e se tornando mais ativa e sociável.
Ela terá de continuar a receber injeções de Lupron a cada 28 dias até os 11 anos de idade, para reprimir a puberdade precoce. Mas o importante é que ela não passa mais pelas convulsões que a lançavam a acessos de aparente raiva ou riso.
Agora, quando Grace ri, não é obra do tumor, mas sim a risada lírica de uma menina travessa de quatro anos que está livre de convulsões.

Tradução: Paulo Migliacci ME
Fonte:
http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI2887081-EI298,00.html
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